quinta-feira, outubro 12, 2006

Mágoa


Entrou e sentou-se. Assim desenhada sob falsos contornos de um idílio antes perfumado. E ficou silenciosa, sem convite.

Quando a vi chegar o outro já abandonara a sala, espelho da casa, para se instalar no quarto do fundo. Nunca se tinham visto, mas já se haviam falado, como num telefonema cujo som ecoa distante. E ela parecia convencida que ele, quando magoado, era muito semelhante a ela. Mas ela assim permanecia, sempre, silenciosa, discretamente se deixando a revelar. A figura perfeita de uma mulher sóbria, discreta.
Mas ele virara-lhe as costas. Fugia-lhe. E nessa recusa ela ganhava mais força, intensificava-se esse seu silêncio, a sua imponência ainda que pouco imperceptível, mas marcante.
Nas longas conversas que tiveram, ele estava quase sempre fragilizado, as agruras tornavam-no triste, as dificuldades calavam-no, faziam-no silencioso e dolorido. Como ela gostava de vê-lo assim! Como eram iguais, sendo tão diferentes!

Ás vezes, ele estava bem, incendiado de paixão, inflamado de desejo, feliz e de bem com a vida. E ela não se revia nele. Não gostava desses encantos, desses ardores, partida que estava de tanto existir em segredo. Queria ser ela a dominar, com tudo estampado no rosto, sem que fosse necessário dizer palavra para se fazer notar, para se fazer mártir sem tempo nem voz.
E nessa teimosia, ele consumiu-se, viu-se dominado. Talvez então, pensou, sejamos mesmo o espelho um do outro, se tantas vezes me magoei e nessas tantas ela me acompanhou e me entendeu, sem me levantar, sem me estender a mão, só estando tão só como eu…
E confundiram-se os dois.

E dominado, ele retirou-se do seu papel principal e deixou-a ocupar o seu lugar no centro da casa. Ficou refugiado no quarto dos fundos, apagado, solitário, resto de si próprio.
O Amor estava cansado e retirou-se. A Mágoa ficou sentada bem no centro da sala e aí reinou seu reinado sem tempo, nem voz…

3 Comentários:

Blogger teorias disse...

Bela história... é bastante realista pois não segue a lógica do "e acabaram felizes para sempre". Grande parte das vezes é a mágoa que reina (mas ainda bem que não é sempre assim). O importante é saber até que ponto a mágoa é grande de mais para se transformar em ruptura... ou suportável para ser assimilada e ultrapassada. Ultimamente estou numa fase em que não faço a mínima ideia...

outubro 12, 2006 1:01 da tarde  
Blogger Ponta Solta disse...

Eu tb não faço a mais pálida ideia, mas que ela existe, existe.

E finais felizes, normalmente não gosto de livros assim, não se coadunam com a realidade infeliz.

outubro 12, 2006 3:13 da tarde  
Blogger fairybondage disse...

Vai ver este site!!! É um concurso de contos da net, se calhar já conheces, simplesmente achei que poderias gostar!!
Bjs

http://www.ocontadordehistorias.com/talentos.html

outubro 14, 2006 3:08 da tarde  

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